A dialética do Piquenique
O Piquenique é uma forma de orgia. Pode estabelecer-se como deboche, e pode assumir também, um porte de “festim licencioso”. De fato, nada mais é do que uma celebração. Um encontro de indivíduos dividindo espaço, um bocado de gostosuras e alguns líquidos. Pode ser no campo, sobre almofadas, em ambientes cobertos ou em praias.
A necessidade de conforto, não é bem-vinda, uma vez que a situação do Piquenique já indica um clima descontraído. Aliás, o conforto, em casos de Piquenique, passa facilmente por exigência reacionária e acaba não favorecendo o bom desempenho e disposição para troca, além de “brochar” o companheiro que quer saborear, de várias maneiras, o momento.
O Piquenique é situação tão hermética que em meio a um clima burguês, junta certo bucolismo, consumo, fartura, manchas, desapego, materialismo, café, chás, e consciência estética – basta se dar conta de que as toalhas nas quais se derramam os restos sempre são xadrezes ou dotada de alguma estampa ou padronagem de bom gosto.
Não há, na maioria dos casos de Piquenique, imprescindíveis preocupações higiênicas, fato estranho. Geralmente não se dá muita atenção às especulações sobre fatos bizarros que um dia poderiam ter ocorrido no mesmo lugar em que se decide fazer tal celebração, como por exemplo, um estupro, um assassinato, ou um simples despejo de chorume por sacos de lixo em decomposição. Formigas caminhando livremente sobre as delicias, moscas gulosas se esfregando em cremes, ou mesmo, mãos, carregadas de coliformes fecais, escolhendo a toque qual maçã devorar. Tudo isto parece participar do festim, sem nenhum tipo de condenação ou indignação, pois se trata de orgia.
Se Piquenique pode ser orgia, pode ser, também, bacanal. Logo, neste caso Baco se faz presente. Obviamente, o vinho, ou a homenagem ao vinho por outro tipo de alcoólico, são bastante bem-vindos: trata-se de comunhão. Pode ser melaço de cana fermentado, ou garrafa em forma de cano. É de bom senso perceber que o líquido deve fluir, de modo a saciar a sede quase libertina de todo o grupo.
As risadas e prazeres vão surgir rapidamente e de modo gradativo ao decorrer da pitoresca reunião: o alimento alivia tensões. A ingestão faz relaxar. Conforme as mordidas devoram a comida, o conforto se estabelece no Piquenique, sem que ninguém tenha querido ou reivindicado a sua presença. Os verdadeiros praticantes sabem que as manchas nas toalhas, lenços ou almofadas jamais seriam condenadas como sujeiras. Muito pelo contrário, as manchas acabam por compor um registro do deleite grupal. São verdadeiros indícios de que o que importa mesmo nestas horas é, sem sombra de duvidas, comer melaço e se lambuzar.
Piquenique é o ato de escolher e agarrar o seu bom bocado, sempre lembrando se há o suficiente para todos os libertinos presentes. Descascar, limpar, assoprar, desfrutar e saciar. É preciso deixar-se lambuzar. Tudo isso em viés coletivo. Pois uma vez que haja espaço para alguém se lambuzar, há vontade suficiente de se organizar um próximo Piquenique.