Anarcademia
Anarcademia
é um projeto concebido para a 28a Bienal de São Paulo com o objetivo de propor uma reflexão sobre o ensino da
arte. Durante os meses que precederam a inauguração da exposição, um grupo de
artistas e estudantes de arte encontraram-se semanalmente para discutir os
limites da obra de arte e da atuação do artista contemporâneo. A partir da
abertura da mostra, esses encontros serão transferidos para o Pavilhão da
Bienal. Os participantes
apresentarão diariamente suas reflexões, referências e experimentos plásticos
na forma de projetos, individuais ou coletivos, que serão sobrepostos uns aos
outros, contaminando-se, anulando-se ou completando-se.
O esquema da Anarcademia surgiu dos encontros que organizo com meus
alunos para orientação do trabalho de conclusão do curso de graduação da
faculdade de artes plásticas da FAAP. Esses encontros nasceram na esteira da
Oficina Cultural 3oAndar, escola criada por Eduardo Brandão, Felipe
Chaimovich e eu, que durou de 1995 a 2000. A “Escolinha”, como era chamada
pelos alunos, situava-se num prédio na Barra Funda e hospedava aulas, ateliês
de artistas recém-saídos da faculdade, exposições, palestras, sessões de vídeo
e super-8, música ao vivo e festas. Reuníamo-nos nos sábados à tarde, para
discutir trabalhos, projetos, textos e, uma vez por mês, assistir a um
palestrante convidado que generosamente se dispunha a falar para um monte de
jovens. Com o fim da “Escolinha”, comecei a realizar encontros em minha casa,
nas sextas-feiras à noite, regados a petiscos e vinho. Neles, sentamos à mesa e
falamos de banalidades, discutimos a produção plástica dos participantes,
assistimos a filmes e vídeos, ouvimos música, fazemos tatuagens, analisamos ou
simplesmente lemos textos relacionados a arte, arquitetura, história,
filosofia, política etc.
*
Os encontros de
sexta-feira deram origem a uma série de oficinas/exposições que denominei de O museu do vazio,
realizadas, ao longo dos anos, em diferentes instituições: na
École Cantonale des Arts Visuelles (Ecav) em Sierre, Suíça; na Galeria
Vermelho, em São Paulo; na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) em
Florianópolis, Santa Catarina; na Wits School of Arts (Wsda) em Joanesburgo,
África do Sul, e no Paço das Artes em São Paulo. Essas cinco experiências
tinham o objetivo de demonstrar que o valor artístico de um objeto está fora
dele, que uma obra é apenas um pretexto para a experiência de arte se
concretizar e que sua qualidade artística está na articulação de vetores que conectam objetos a sujeitos. Exploravam a possibilidade de se fazer um
trabalho em que a experiência de arte suplantasse a existência do objeto e
fosse mantida num estado de suspensão semelhante ao do espanto:
irrepetível e intraduzível.
Apesar de, em cada
uma das situações, as propostas variarem ligeiramente, a idéia central da
oficina/exposição consistia em que os participantes realizassem uma obra
coletiva que existisse apenas durante sua apresentação, estabelecendo um jogo
simbólico com o mundo por meio da celebração ou festa que, ao mesmo tempo em
que é coletiva e plena, é subjetiva, fugaz e indisciplinável. Meu propósito
era, por um lado, investigar a dimensão utópica da arte e, por outro, refletir sobre as possibilidades da prática investigativa
de arte, dentro da “academia”. As propostas visavam estabelecer conexões entre
o espaço físico e o ator/espectador; fazer um paralelo entre o museu, a escola
de artes, o estúdio de ensaio de grupos de rock e o campo de futebol de várzea
em que se joga uma pelada entre amigos; ocupar o espaço sagrado das artes
plásticas, não com objetos impregnados de aura, mas com proposições banais e
talvez não tão facilmente reconhecidas como obras de arte; transformar o
museu/galeria num ambiente mundano cuja indiferenciação manifestasse a nudez
absoluta da experiência; impor uma forma ao ambiente que fosse tão aderente a
ele que ele parecesse existir em função do bem da forma.
*
A primeira
experiência com a oficina O museu do vazio foi na École Cantonale des Arts Visuelles, em 2001. Os participantes
eram
estudantes dos dois últimos anos da escola de artes visuais, aos quais sugeri
que pesquisassem as manifestações artísticas locais de vanguarda da década de
1960. A partir de suas investigações, tomamos como base obras de três suíços,
para realizar uma intervenção coletiva: as exposições de Harald Szeeman, os
primeiros filmes de Jean-Luc Godard e os projetos de Le Corbusier.
Os participantes
da oficina criaram um grupo de arte-ativismo fictício e, num quarto de papelão
construído por eles, forjaram uma performance documentada em super-8. Cada
integrante inventou um pseudônimo e fez um filme de três minutos com a
aparência de ter sido rodado durante o final dos anos 1960. O convite da mostra
apresentava a pré-estréia da produção do grupo fictício. Foi intitulada Quand les attitudes
déforment les altitudes, referindo-se à exposição Quand les attitudes
deviennent forme, curada por Harald Szeeman em 1969, no Kunsthalle de
Berna. Consistia de duas salas: uma sala de projeção, montada como um cinema
tradicional, e uma sala com fotos documentais da construção de papelão, com um
bar e um DJ que tocava músicas dos anos 1960 e 1970. A experiência de arte
ocorreu durante a abertura da exposição, incorporando, aos filmes e fotografias
apresentados, o contexto local, o cenário, a trilha sonora e a relação com o
público, intrigado e oscilando entre ficção e realidade.
A segunda
experimentação com O museu do vazio aconteceu na Galeria Vermelho, em 2002. Aqui, defini esse título para
minhas propostas, apropriando-me de um termo utilizado por Robert Smithson para
nomear a ilustração de um de seus ensaios1. Convidei alunos e ex-alunos que freqüentavam os encontros de sexta-feira em
minha casa e estavam a par das questões que eu considerava pertinentes para a
realização da mostra: qual a natureza da obra de arte e como distanciar seu
valor artístico de valores artificiais impostos pelo mercado de arte.
Planejamos duas semanas de encontros diários entre todos os participantes para a leitura de textos e definição da ocupação do espaço e do tempo da
mostra. A exposição consistiria de trabalhos que fossem se realizando durante
todo o período da mostra e que permanecessem somente neste tempo e lugar
específico. Não deveria ser, contudo, uma mostra dos processos de realização das
obras mas sim a própria obra. Foi denominada Marrom, para propor um paralelo entre
o espaço expositivo tradicional, o cubo branco, o espaço de construção da
imagem técnica, a caixa preta, e o nome da galeria –
Vermelho –, explorando o significado simbólico da cor marrom que,
por ser uma mistura indefinida de diversas cores, é associada a sujeira e
impureza.
Todas as propostas
foram elaboradas a partir dos problemas surgidos nas discussões, e os projetos,
shows, palestras, jantares e mesas-redondas abordaram questões fundamentais
para a arte atual, como, por exemplo, qual a relação entre matemática, física e
as novas mídias artísticas; qual o espaço ideal para a apresentação de obras
contemporâneas; quais os limites entre arte e arquitetura, música, literatura,
sociologia etc. A partir da abertura, o público pode visitar e participar da
exposição.
A terceira
aplicação de O
museu do vazio foi na Universidade do Estado de Santa Catarina,
em 2003. Os participantes
eram, na maioria, alunos, ex-alunos e professores do curso de artes plásticas.
A partir da leitura de uma conferência de Hans-Georg
Gadamer, de textos de Robert Smithson, de uma proposta de Hans Ulrich Obrist e de um
texto sobre James Lee Byars2, propus a
realização de um trabalho que fosse uma festa. A obra deveria ser a própria
festa e não decoração ou atração.
Os estudantes
produziram um evento no campus da Universidade. Decoraram e iluminaram
determinada área e dividiram-se para comprar as bebidas. Um dos estudantes
trouxe uma bateria, uma guitarra e um amplificador. Os participantes fizeram performances
individuais ou em grupos e pequenas intervenções no espaço. Apesar de muitos
trabalhos terem sido meras atrações, a experiência da festa foi muito
bem-sucedida. Moradores da vizinhança, funcionários da Universidade e
estudantes e professores de outras faculdades apareceram no local, atraídos
pela música ao vivo. A precariedade do equipamento e da música tocada convidava
o público a interferir e participar.
A quarta
experiência ocorreu em Joanesburgo, em 2004, com alunos do primeiro e do último
ano da Wits School of
Arts. A partir da leitura dos mesmos textos citados antes e com a
cooperação da artista canadense Ann Marie Peña, propus aos alunos a ocupação de
um espaço de exposição com um trabalho coletivo que existisse somente durante a
abertura e que propusesse uma reflexão sobre o estatuto e o valor de uma obra
de arte contemporânea. Ann Marie e eu, como artistas convidadas a Joanesburgo
pela instituição The Bag Factory, tínhamos um orçamento destinado à realização
de uma oficina com a comunidade local e um espaço para a apresentação de uma
exposição. Oferecemos aos alunos tanto o orçamento quanto o espaço que nos fora
reservado.
Os participantes
surpreenderam-nos ao se encontrarem diversas vezes extracurricularmente para
discutir os textos e as proposições. A exposição foi chamada de Herd, e
os alunos apresentaram um trabalho coletivo, dividindo com o público as
conversas ocorridas durante as semanas da oficina, por meio de fones de ouvido
acoplados a walkmans.
Produziram um bar com bebidas grátis para quem apresentasse carteira de
estudante, um DJ e uma série de videoprojeções de imagens captadas durante as
discussões.
A quinta e última experiência aconteceu na exposição Vorazes, grotescos e malvados, no Paço das Artes, em
São Paulo, em 2005. Da
mesma forma como acontecera na Marrom, convidei, para participar do projeto, o grupo de
artistas jovens e estudantes de arte que freqüentava os encontros de
sexta-feira em minha casa. Sob o título de ( ), a oficina propunha uma exposição dentro da
exposição; uma obra coletiva que seria o evento em si, que transformaria o
espaço expositivo num espaço participativo, num híbrido entre ateliê, galeria,
sala de estar, bar e cinema.
( ) pretendia ressaltar a idéia da arte
enquanto celebração, questionando a importância exagerada dada ao objeto de
arte e à figura do artista e estabelecendo uma reflexão sobre o estatuto da
obra de arte contemporânea e o valor a ela atribuído, decorrente de paradigmas
tradicionais como autoria, unicidade, durabilidade etc. Cada um dos participantes ocupou a sala de exposição por um dia e teve uma tarde para montar sua
exposição – e uma manhã, a seguinte, para desmontá-la. Cada um entregou o
espaço para o próximo participante da mesma forma como foi encontrado. Cartazes
e panfletos foram espalhados pela universidade para convidar estudantes,
professores e funcionários para a celebração da abertura das exposições, todos
os dias, às 17hs. Aos sábados, às 15h, foram programadas várias apresentações
musicais e, aos domingos, às 15h, projeções de filmes de longa-metragem com
pipoca. Tanto a programação quanto um bar foram montados e geridos pelos
participantes.
*
Os encontros de
sexta-feira continuam a acontecer, com mais ou menos freqüência. Vários
convidados já nos presentearam com palestras ou depoimentos, incrementando
nossas conversas e nossos horizontes. Numa delas, fui lembrada das reuniões que
o professor Herbert Duschenes fazia em sua casa, nos anos 1980, com alguns de
seus alunos do curso de artes plásticas da Faap. Em sua casa desfrutávamos,
entre sanduíches e vinho, de seus documentários caseiros e impecáveis sobre
arte contemporânea, arte oriental, arte eletrônica e tudo o mais a que não
tínhamos acesso ou que não cabia no planejamento de suas aulas de história da
arte.
Agora, tem-se
acesso à informação rapidamente: aprende-se a forma, conhece-se os
procedimentos, as regras e o vocabulário. Mas os encontros continuam a suprir
uma carência acadêmica porque fazer arte é também uma forma de perceber as
coisas do mundo e se relacionar com elas; é refletir e interferir nas ações, no
comportamento e nas crenças da comunidade; é conectar memória e porvir, sujeito
e objeto, situação e existência. Fazer arte é fazer política.
Então, da mesma
forma que um governante, um artista é responsável tanto por sua obra quanto por
suas implicações públicas, e tem que estar ciente de suas articulações com as
instituições do poder, sejam elas o Estado, a mídia ou o poder econômico privado,
representado pelos colecionadores e investidores. Articulações inevitáveis, já
que a arte, pelo menos desde a Idade Média, mantém relações cordiais com o
poder – incorporado primeiro pela igreja, depois pela aristocracia e,
mais recentemente, pela burguesia. Até meados do século passado, o artista
tinha, mesmo imerso nesses jogos do poder, duas alternativas: fazer o jogo das
necessidades do opressor, ou adotar uma posição marginal e vanguardista que,
apesar de depreciativa das massas, proporcionava, com o decorrer do tempo, uma
iconografia crítica que funcionava como agente desmistificador da história
material3.
Atualmente, no
capitalismo avançado em que vivemos, a atitude
“marginal” de outrora é aquilo que satisfaz mais plenamente as necessidades do
poder. Qualquer atitude, experiência ou ação artística “marginal” é logo
anulada por meio da corporificação e mercantilização da obra e do artista, ou
esvaziada por meio de sua espetacularização. Quanto mais “marginal” e
“vanguardista” for o epíteto adotado pelo artista, mais satisfeito fica o
mercado ao incorporá-lo ao sistema, e comprovar, assim, sua onipotência sobre a
pretensa subversão. Quais são então as opções do artista? Assumir o papel de
bobo da corte? Reivindicar a posição alienada de “silêncio político”? Bravatear
um comportamento marginal? Mas marginal a quê, se, no mundo capitalista, não
existe dentro nem fora?
*
A Anarcademia se oferece como um lugar para que
discussões possam se transformar em intervenções específicas, em atos de risco
que revelem as contradições imbricadas no fazer artístico. Um território
temporário que, por meio da investigação de fendas e dobras no sistema, dê
vazão a um pensamento coletivo que ainda não esteja engessado numa instituição.
Um campo experimental que propicie, assim, a formação de constelações revolucionárias entre a arte e o presente.
Dora Longo Bahia
Outubro de 2008
1 O desenho de Robert Smithson intitulado The Museum of the Void (c.1967. Lápis, 19 x 24”) ilustra o ensaio Some void thoughts on museums de 1967 (FLAM, 1996, p. 41).
2 Além do livro de Gadamer, foram propostos os textos “Entropy and the new monuments” e “Some void thoughts on museums” de Robert Smithson, e Do It de Hans Ulrich Obrist e James Lee Byars: Vislumbar lo perfecto de Kevin Power (FLAM, 1996, pp. 10 e 41; OBRIST, 1997; POWER, 1995).
3 BUCK-MORSS, 2005, p. 40.
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